Qual é a herança de Rodrigo Janot? De um lado, temos um indivíduo que durante quatro anos provocou uma revolução de eficiência no Ministério Público Federal e que, em colaboração com um grupo de juízes em diversas instâncias, criou a impressão de que a Justiça de fato é para todos neste país. Porém, com a mesma força que a Operação Lava Jato sacudiu o mundo político brasileiro desde meados de 2015, o próprio Janot e o Ministério Público se viram atingidos pela celeuma que envolve o acordo de delação dos irmãos Batista e as possíveis implicações disso sobre o antigo Procurador Geral e seus colaboradores.
A partir de um aprofundamento reflexivo acerca daquilo que a Sra. Raquel Dodge irá herdar à medida que esteja efetivamente investida no cargo de Procuradora Geral da República, é possível afirmar que a herança trará duas necessidades: a normalização das relações com os outros poderes da república e dentro da própria instituição. É importante lembrar que a atual procuradora não foi a mais votada na lista tríplice da corporação e que travou um diálogo pouco explicado com o Presidente da República antes de sua posse. Tais eventos trazem a tona possíveis fissuras dentro do MPF que se tornou uma peça fundamental em termos de combate à corrupção e, sem sombra de dúvida, serão um teste de liderança para a nova Procuradora Geral desde suas primeiras horas no novo cargo.
No que concerne a elementos de matiz institucional, caberá à nova liderança pacificar o choque cada dia mais visível entre algumas correntes internas do MPF, bem como, normalizar as relações desta casa com a Polícia Federal. Faz-se menção ao fato de que o acordo de delação com a diretoria da JBS gerou certo burburinho entre as duas instituições, tendo em vista que alguns delegados da PF acusaram uma sensação de desprestígio frente ao MPF, sobretudo, no que concerne a forma como os acordos foram costurados. Não por acaso, o tempo mostrou que algo estava mal amarrado em todo o processo.
Porém, mais do que ilações acerca da relação institucional entre o MPF e o Departamento de Polícia Federal, cabe aqui refletir acerca de qual será o maior legado de Rodrigo Janot após sua passagem no MPF. Caberá a nova Procuradora Geral da República decidir a melhor estratégia de preservação da Operação Lava Jato, pois há algum tempo, construiu-se a narrativa de que os procuradores da força-tarefa, seguindo o exemplo de seu líder, se afastavam gradualmente de um posicionamento técnico e assumiam posicionamentos políticos.
Neste sentido, a narrativa encontrou respaldo na realidade a partir das declarações feitas pelo antecessor da Sra. Dodge, sobretudo, com frases de efeito – caso dos bambus e flechas – que pareciam muito mais adequadas a um candidato em palanque que a um indivíduo investido de cargo público não eletivo. Tendo em vista que o país se encontra em franco processo de conflagração institucional, muito da politização das falas de Janot pôde ser tributado a necessidade de reação aos ataques oriundos de outros polos de poder da república.
A dificuldade, entretanto, está no fato de que as falas, aparentemente, não se consolidaram em ações jurídicas suficientemente fortes para desalojar dos centros de poder indivíduos com envolvimento em ações escusas e investidos de autoridade formal. O contra-argumento para a falha de Janot em conseguir levar adiante as denúncias contra Michel Temer pode calcar-se no fato de que o governo se utilizou de estratégias pouco ortodoxas para garantir sua vitória congressual. Contudo, é ponto consensual que em grande medida a estratégia de antigo procurador geral de partir para o confronto contra todo o establishment político nacional mostrou-se bem-sucedida apenas em criar uma enorme coalizão contrária a Lava Jato.
E neste sentido, a tarefa de Dodge envolve três frentes: a primeira de estabelecimento de controle após o fim do ciclo de uma liderança carismática dentro da organização que passa a dirigir; A segunda, na construção de pontes com setores renovadores nos outros poderes de forma que os possíveis avanços institucionais das ações do MPF não sejam contestadas a partir da narrativa de perseguição política; e, por fim, conseguir garantir a manutenção do suporte popular às ações do MPF, mesmo que essas assumam um caráter menos espalhafatoso, conforme visto em alguns momentos durante a gestão Janot.
De fato, Raquel Dodge, pela própria biografia de serviços prestados ao MPF e a democracia brasileira possui todos os atributos técnicos necessários para dar maior eficácia às ações de combate à corrupção em curso. A incógnita reside na própria capacidade dos seus pares de compreenderem a necessidade de que o órgão se mantenha unido contra um adversário comum, o arbítrio gerencial construído por uma gerontocracia aferrada ao poder. Os resultados visíveis de tal ação se manifestam na ineficácia das políticas públicas, seja por incompetência, seja por desonestidade e cabe, precipuamente ao Ministério Público Federal, agora sob nova liderança, assumir o protagonismo constitucional que auxiliará os ambientes renovadores da sociedade brasileira a encontrarem um novo caminho.