Ontem o Brasil discutiu a decisão do Juiz federal do DF que libera tratamento para 'cura gay' que afirma que homossexualidade é doença. A Ação popular questionava resolução do Conselho Federal de Psicologia que proibia tratamentos de reorientação sexual. Desde 1990, OMS deixou de considerar homossexualidade doença; é importante lembrar que homofobia não é considerada crime.
Nesse momento é importante lembrar a história de quão perto a Alemanha - e grande parte da Europa – esteve de libertar suas pessoas LGBTQ das amarras legais e preconceituosas, e tudo se reverteu violentamente em decorrência dos novos regimes autoritários.
Na década de 1920, Berlim tinha quase 100 bares e cafés gays e lésbicas. Viena tinha cerca de uma dúzia de cafés, clubes e livrarias gay. Em Paris, certos bairros eram conhecidos por exposições abertas de vida noturna gay e trans. Mesmo Florença, Itália, teve seu próprio distrito gay, assim como muitas cidades europeias menores.
Os filmes começaram a representar personagens homossexuais simpáticos. Vários protestos foram organizados contra representações ofensivas de pessoas LGBTQ. E os empresários da mídia perceberam que havia uma classe média de leitores gay e trans a quem eles poderiam atender.
Em parte, dirigindo essa nova era de tolerância, os médicos e cientistas começaram a olhar para a homossexualidade e o "transvestismo" (uma palavra daquela época que abrange pessoas transexuais) como uma característica natural com a qual alguns nasceram, e não um "distúrbio". A história de Lili Elbe e a primeira mudança de sexo moderna, famosa no recente filme "The Danish Girl", refletiram essas tendências.
Por exemplo, Berlim abriu seu Instituto de Pesquisa Sexual em 1919, o lugar onde a palavra "transexual" foi cunhada e onde as pessoas poderiam receber aconselhamento e outros serviços. Seu médico principal, Magnus Hirschfeld, também foi consultado em relação a mudança de sexo de Lili Elbe.
Conectado a este instituto existia uma organização chamada "Comitê Científico-Humanitário". Com o lema "justiça através da ciência", este grupo de cientistas e pessoas LGBTQ promoveram direitos iguais, argumentando que as pessoas LGBTQ não eram aberrações da natureza.
A maioria das capitais europeias hospedou um ramo do grupo, que patrocinou as palestras e procurou a revogação de leis que condenavam o homossexualismo. Esses grupos juntos com outros grupos e políticos liberais, conseguiram influenciar uma comissão parlamentar alemã para recomendar a revogação de sua principal lei que tratava do assunto já em 1929 .
Embora esses desenvolvimentos não significassem o fim de séculos de intolerância, a década de 1920 e início dos anos 30 parecia certamente o começo do fim. Por outro lado, o maior "out-ness" de pessoas gays e trans provocou os que pensavam de forma diferente.
Um repórter francês, lamentando a visão de pessoas abertas LGBTQ em público, reclamou: "o contágio ... está corrompendo todos os meios". A polícia de Berlim argumentou que as revistas destinadas a homens gays - que chamavam de "materiais de imprensa obscenos" - estavam proliferando. Em Viena, as palestras do "Comitê Científico Humanitário" sempre estavam repletas de apoiadores, mas uma foi atacada por jovens que lançaram bombas. Um “conselheiro” parisiense em 1933 chamou de "crise moral" o fato de os homossexuais, conhecidos como "invertidos" naquela época, poderem ser vistos em público.
"Muito longe de mim querer recorrer ao fascismo", disse o conselheiro, "mas o mesmo, temos que concordar, em algumas coisas, esse regime às vezes fazia bem ... Um dia, Hitler e Mussolini acordaram e disseram:" Honestamente, o escândalo durou o suficiente "... E ... os invertidos ... foram expulsos da Alemanha e da Itália no dia seguinte".
É essa vontade de fazer sacrifícios sociais e até de sangue de minorias em troca da "normalidade" ou prosperidade, que fazem com que alguns analistas sociais e históricos comparem esse momento histórico com o atual.
Na década de 1930, a Depressão espalhou a ansiedade econômica, enquanto as lutas políticas nos parlamentos europeus tendiam a se espalhar para as verdadeiras lutas de rua entre esquerda e direita. Isso te lembra algo?
Fascistas ofereceram aos europeus uma escolha de estabilidade ao preço da democracia. A tolerância das minorias foi desestabilizadora, disseram. Isso te lembra algo?
As liberdades expansivas deram às pessoas "indesejáveis" a liberdade de minar a segurança e ameaçar a cultura "moral" tradicional. Pessoas gays e trans eram um alvo óbvio. Isso te lembra algo?
O que aconteceu a seguir mostra a velocidade do chicote com que o progresso de uma geração pode ser lançado no sentido inverso.
Um dia, em maio de 1933, estudantes virgens e brancas marcharam em frente ao Instituto de Pesquisa Sexual de Berlim – o tal refúgio seguro para pessoas LGBTQ - chamando-o de "Un-German". Mais tarde, uma multidão queimou sua biblioteca. Mais tarde ainda, seu chefe interino foi preso.
Quando o líder nazista Adolph Hitler precisava justificar a prisão e assassinato de antigos aliados políticos em 1934, alegava que eram homossexuais. Foi criada uma área especializada anti-gay na Gestapo. Só no ano seguinte, a Gestapo prendeu mais de 8.500 homens gays, possivelmente usando uma lista de nomes e endereços confiscados no Instituto de Pesquisa Sexual. Com isso, não apenas a legislação restritiva a atividades sexuais não foi revogada, como uma comissão parlamentar recomendou apenas alguns anos antes, mas foi alterada para ser mais expansivo e punitivo.
Adolf Hitler também interferiu, diretamente, na liberdade e poder de aceitação dos homossexuais. Hitler e os líderes do partido Nazi tratavam a homossexualidade como uma ameaça ao Estado e à moral pública, forjavam laudos médicos para provar que os gays sofriam de uma deficiência hereditária e foram pioneiros a defender a indefensável “cura gay”.
À medida que a Gestapo se espalhava por toda a Europa, se expandiu a caça. Na França conquistada, a polícia da Alsácia trabalhou com a Gestapo para prender pelo menos 200 homens e enviá-los para campos de concentração. Na Itália, com um regime fascista obcecado pela virilidade, enviou pelo menos 300 homens gays a campos de concentração brutais durante o período de guerra, declarando-os "perigosos para a integridade da raça".
O número total de europeus presos por ser LGBTQ pelo domínio do fascismo é impossível de saber por falta de registros confiáveis. Mas uma estimativa conservadora é de centenas de milhares de prisões apenas durante o período de guerra .
Sob essas condições de pesadelo, várias pessoas LGBTQ na Europa escondiam cuidadosamente sua sexualidade genuína para evitar suspeitas, casando-se com membros do sexo oposto, por exemplo.
Nos campos de concentração, os homens homossexuais foram marcados com um triângulo rosa. Nesses lugares de horror, homens com triângulos rosa eram escolhidos para abusos particulares. Eles foram mecanicamente violados, castrados, escolhidos para experimentos médicos e assassinados pelo simples prazer sádico dos guardas. Um homem gay atribuiu sua sobrevivência ao fato de ter trocado seu triângulo rosa por um vermelho - indicando que ele era apenas um Comunista. Em princípio, os nazistas não pensavam em exterminá-los, mas “curá-los” em casas de prostituição, trabalhos árduos e injeções com doses altíssimas de hormônios masculinos. Até os soldados do grupo nazi pegarem gosto por usar a marcação do triângulo rosa como alvo na prática de tiros.
Não vivemos na Europa dos anos 1930. E fazer comparações superficiais entre a época e agora só pode produzir conclusões superficiais.
Mas com novas formas de autoritarismo enraizadas e buscando expandir-se no mundo, e aqui no Brasil também, vale a pena pensar sobre o destino da comunidade europeia LGBTQ nos anos 30 e 40.
Referencias:
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