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Creomar Lima Carvalho de Souza

Não há caminho fora da Constituição


A construção de reflexões acadêmicas acerca da democracia como sistema político serve para reificar duas questões fundamentais: a primeira é que em sistemas de matiz democrática há uma troca do corte de cabeças, pela contagem de cabeças (manifestada no voto). A segunda questão em voga, que encontra consenso em grande parte dos autores que se debruçam sobre o tema, é o fato de que o sistema se ampara tanto na contagem de cabeças, quanto na crença de que, as opiniões dadas pelos cidadãos em situação de igualdade política, podem ser ouvidas e transformadas em regras mediante processos de consenso político.

Tendo como ponto de partida ambas as questões de base, pode-se inferir que democracia viva é aquela em que há uma sintonia de expectativas entre o povo e os representantes eleitos. Tal processo gera, em termos ideais, uma sinergia que faz com que a crença na validade dos processos de escolha que se transformam em políticas públicas de toda a ordem serão respaldadas inclusive por aqueles que sejam inicialmente contrários a uma determinada proposição. Desse modo, a relação política não estaria baseada na percepção autoritária de que a regra só vale quando “eu ou os meus vencem”, mas, na lógica humanística de que o processo que leva às escolhas é o mais acertado ao dar a todos os indivíduos o direito de se posicionarem a partir de alguns filtros.

Partindo-se dos elementos supracitados, faz-se necessário refletir acerca da atual conjuntura política e social nacional. Quais são as razões que tem alimentado o crescimento de um discurso de contestação da ordem democrática? Na tentativa de lapidar a reflexão anterior, sob o risco de incorrer em uma redundância, a outra pergunta que cabe é: Por qual motivo a narrativa de apologia a ações autoritárias tem ganho visibilidade?

Dos bancos da universidade aos grupos de WhatsApp, há um crescente respaldo à narrativa de interrupção dos processos democráticos. Tal discurso ampara-se na ideia de que a democracia brasileira nascida a partir da Constituição Federal de 1988 é fruto de um pacto político que parece não mais existir. Em outras palavras, o fato de que há uma incapacidade da classe política de fazer um mea culpa, aliado ao fato de que a qualidade dos serviços públicos se deteriora de forma crescente, leva a crer que um choque de autoridade e ordem seria a solução mágica para o estado da situação presente.

Entretanto, por mais que não haja discordâncias de que a classe política está muito mais preocupada com a própria sobrevivência que em prestar contas de seus atos à sociedade, é preciso pontuar que em uma democracia, tal como a nossa, a autoridade e a ordem derivam-se da vontade popular. E nesses termos, a Carta Magna de 1988 oferece mecanismos que vão além do ato do voto para que os cidadãos construam ações, de fato, eficientes em termos de pressão sobre os representantes.

De um lado, vale mensurar por exemplo, o fato de que o direito de manifestação e a possibilidade de exercer oposição aos desígnios dos poderes constituídos estão positivados nas leis e parecem em algum sentido estar sendo pouco usado em termos coletivos. Por outro lado, o fato de que o desgaste da representação tradicional, expressa em lideranças e partidos literalmente saídos do século passado, traz à tona a necessidade urgente de mudança na relação entre cada um dos cidadãos e seus representantes. A compra pela sociedade de uma narrativa do “nós contra eles” é um excelente escudo para indivíduos desprovidos de espírito público e compromisso democrático.

É essencial, portanto, a compreensão de que o maior sucesso da ordem democrática é a possibilidade de fazer uma contestação pública da conjuntura política sem sofrer uma punição. Tal verdade cabe tanto para quem escreve e para quem lê, mas em ambos os casos é necessário que haja parcimônia. Nesse sentido, torna-se possível afirmar que o crescimento da democracia brasileira é marcado por uma adolescência tardia, na qual há um descompasso entre as expectativas de vários setores da sociedade e aqueles que assumiram posse dos mecanismos de representação.

Seguindo a premissa dialética de matriz hegeliana, o sistema tenderá a mudanças, afinal há um choque latente entre a sociedade e as instituições, de um lado, e interinstitucional de outro. Contudo, não há caminho que permita uma melhor acomodação de expectativas positivas que o da contagem das cabeças. A sua alternativa gera um número enorme de traumas e os resultados, já provados pela própria experiência coletiva nacional, não são suficientemente bons para justificar o arbítrio e a falta de liberdade de consciência tão comuns aos regimes de exceção.

Diferentemente de outros momentos da história recente, na atual conjuntura a contestação da ideia de democracia como melhor forma de autogoverno tem encontrado respaldo nas mais variadas matizes partidárias e ideológicas do cenário nacional. De progressistas até conservadores, e no caminho reverso, há gradualmente um número maior de indivíduos com um certo saudosismo de momentos autoritários da vida política nacional.

O momento, portanto, é de crescer e como todo processo de crescimento, há uma dose de sofrimento que pode ser evitada seguindo o velho axioma dos avós: o combinado não sai caro. A melhor combinação coletiva que a sociedade brasileira possui é a Constituição Federal de 1988.

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