O senso comum no debate econômico brasileiro afirma que um dos grandes problemas de nossa economia é a escassez de poupança doméstica, a qual seria a causa fundamental do elevado nível da taxa real de juros prevalecente no Brasil. Para pequenas economias abertas com mobilidade de capitais, contudo, a escassez de poupança doméstica pode ser vista no máximo como a causa dos déficits em conta-corrente e, portanto, da tendência a sobrevalorização crônica da taxa de câmbio. Ainda nesse caso, a evidência empírica disponível parece apontar para a inversão da relação de causalidade, ou seja, o câmbio apreciado é que causa os déficits em conta-corrente e, dessa forma, a escassez de poupança doméstica (leia a esse respeito aqui) .
É fato, no entanto, que a poupança doméstica no Brasil é muito baixa, e que a retomada do crescimento em bases mais sustentáveis exige um aumento da taxa de poupança, do contrário o Brasil continuará dependente de poupança externa e, portanto, refém dos humores dos mercados financeiros internacionais.
O que deve ser feito para aumentar a taxa de poupança? Para os economistas neoclássicos, a taxa agregada de poupança é resultado das decisões racionais dos agentes econômicos. Nesse contexto, uma taxa de poupança baixa seria o resultado agregado de preferências individuais fortemente orientadas para o consumo presente em detrimento do consumo futuro. Em termos mais técnicos, uma baixa taxa de poupança é o resultado de uma elevada taxa de impaciência intertemporal. Sendo assim, os países que apresentam uma elevada taxa de poupança são aqueles países em que, por questões culturais, as preferências individuais se orientam para o atendimento do consumo futuro, ou seja, são países onde a cultura atua no sentido de reduzir a taxa de impaciência intertemporal. Esse seria o caso dos países do Sudeste Asiático. Já em países latinos a cultura é mais voltada para a “boa vida” o que implica numa elevada taxa de impaciência intertemporal, o que termina por gerar uma baixa taxa de poupança. Considerando que mudanças culturais são difíceis, pra não dizer quase impossíveis, de ocorrer, os países latinos estão condenados a ser dependentes de poupança externa para o seu desenvolvimento, ao passo que os países asiáticos serão naturalmente “exportadores de capital”.
A (boa) macroeconomia foi construída a partir da refutação por J.M. Keynes da falácia da composição, ou seja, da ideia de que o todo é sempre e em todo lugar igual a soma das partes. Com efeito, a existência de agentes heterogêneos faz com que o comportamento dos agregados possa divergir, em muito. do comportamento do agente médio ou representativo. Se assim for, então a simples mudança na composição dos agentes (poupadores ou gastadores) na população total pode fazer com que a taxa agregada de poupança se modifique sem que seja necessário nenhum agente individualmente mudar as suas preferências e atitudes com relação ao consumo e poupança.
Uma das preocupações da Teoria Clássica do Desenvolvimento Econômico foi precisamente explicar como os países que passam por um rápido processo de industrialização conseguem aumentar sua taxa de poupança de 4-5% do PIB para níveis superiores a 15% do PIB num espaço de poucos anos (Lewis, 1954). A explicação encontrada foi que nas fases iniciais do processo de industrialização, a existência de mão-de-obra excedente no setor de subsistência ou tradicional permite que o emprego no setor moderno ou industrial se expanda a grandes velocidades com um efeito praticamente nulo sobre o preço de oferta do trabalho. Em outras palavras, o setor moderno se defronta com uma oferta de trabalho infinitamente elástica ao nível do preço de oferta do trabalho (igual ao salário de subsistência acrescido de um prêmio salarial para compensar os trabalhadores pelo incomodo da vida urbana). Como a produtividade é maior no setor moderno do que no setor de subsistência – pelo fato de que a produção no primeiro é intensiva em capital ao passo que a produção no segundo é intensiva em trabalho – segue-se que a transferência de mao de obra do setor de subsistência para o setor industrial irá resultar num aumento da produtividade média da economia, sem que ocorra, concomitantemente, um aumento do nível do salário real. Esse processo de mudança estrutural irá produzir, portanto, um aumento da participação dos lucros na renda. Como a propensão a poupar a partir dos lucros é maior do que a propensão a poupar a partir dos salários (Kaldor, 1956) haverá um aumento da taxa de poupança agregada. Em suma, ao longo do processo de industrialização das economias em desenvolvimento deve-se observar uma correlação positiva entre taxa de poupança, participação dos lucros na renda e participação da industria de transformação no PIB.
Essa conjectura pode ser confirmada com base numa amostra de 30 países em desenvolvimento para o período 1988-1992 (Ros, 2001). As figuras 1 e 2 abaixo mostram (i) a existência de uma correlação positiva entre taxa de poupança doméstica e participação dos lucros na renda ; (ii) a existência de uma correlação positiva entre a taxa de poupança e a participação da indústria de transformação no PIB.
Figura 1
Figura 2
Quais as lições que podemos tirar para o caso brasileiro? Nos últimos 10 anos tem ocorrido um inegável processo de desindustrialização da economia brasileira seguido, mais recentemente, por uma redução da taxa de lucro sobre o capital próprio das empresas não financeiras. A partir do raciocínio acima exposto essa mudança estrutural perversa deve ser seguida também por uma redução da taxa de poupança, algo que de fato vem ocorrendo de forma acentuada na ultima década. Sendo assim, o problema da “escassez de poupança” no Brasil pode não ser cultural, mas apenas o resultado da perda de importância da indústria de transformação na economia brasileira. Nesse caso, o resolução “problema da poupança” passa obrigatoriamente pela reindustrialização da economia brasileira.
Referências
Lewis, A> (1954). “Economic Development with Unlimited Supplies of Labor”. Manchester School of Economics and Social Studies, 28: 139-191.
Kaldor, N. (1956) “Alternative Theories of Distribution”, Review of Economic Studies, vol. 23, p. 83-100.
Ros, J. (2001). Development Theory and the Economics of Growth. Michigan University Press: Michegan.