Há variadas concepções sobre as origens da crise política brasileira. Porém, existe uma aparente lacuna no debate acerca de quais são os elementos de longo prazo que levaram a sociedade brasileira à atual situação. Neste sentido, este breve escrito tem como objetivo tentar entender uma questão fundamental: como uma percepção infantilizada de cidadania erodiu os elementos consensuais da sociedade nacional?
Primeiramente, é importante mensurar o fato de que cidadania é percebida como um conjunto de direitos que permite ao indivíduo – cidadão – participar da vida política da sociedade em que ele se insere. Tal concepção traz, de maneira inequívoca para este texto, a opinião de que uma derivação causal dos direitos adquiridos é a assunção de responsabilidades mediante a participação na vida coletiva.
Nestes termos, cabe menção a geração política de 1988 que construiu um texto constitucional e uma concepção de Estado derivadas de suas mentalidades e de um consenso que marcou todo o processo de abertura política: a percepção de que era necessário dar garantias e direitos fundamentais a todos os brasileiros com o maior grau de detalhamento possível. Não por acaso, tais opiniões transformaram a Constituição Cidadã em uma construção robusta no que concerne aos objetivos daquele momento.
Porém, tal edificação reservou uma dificuldade inerente, a incapacidade das estruturas estatais de garantirem a gama de benefícios concedidos de maneira equânime para os indivíduos vistos como politicamente iguais. O resultado fundamental desta distorção foi a criação de dois tipos de cidadãos brasileiros: o primeiro inserido em determinada corporação de ofício do Estado, gozando de benefícios de toda ordem e o segundo, entregue a sua própria sorte e dependente da capacidade do Estado e dos Governos em entregarem políticas públicas eficientes para sobreviver.
Coube ao primeiro grupo construir uma lógica discursiva baseada na ideia de que quanto maior fosse a estrutura estatal, maiores seriam os benefícios distribuídos ao conjunto da sociedade. Ao segundo grupo, por sua vez, restou a expectativa de que promessas postas pelo texto constitucional e por políticas públicas de toda ordem resolvessem suas dificuldades. O fato é que, devido à escassez de recursos ou pela incompetência na gestão desses, tornou-se claro para pessoas fora das estruturas de poder e proteção do Estado que a qualidade dos serviços prestados permaneceria estagnada.
Portanto, o resultado de tal percepção foi se consolidando em uma ideia: os indivíduos antes de se responsabilizarem por qualquer ato deveriam garantir para si mesmos o maior número de direitos e benefícios de toda ordem. Esse processo tornou, gradativamente, a sociedade brasileira em uma enorme rede de favores e desigualdades e colocou a ideia de cidadania como uma assunção de responsabilidades em uma posição secundária.
Hoje, somada a incapacidade da representação política de enfrentar tal situação com sobriedade, tem-se que a sociedade se debate entre opiniões concorrentes de toda ordem, mas que podem ser sumarizadas pela incapacidade de construção de consenso mínimo em qualquer agenda. De fato, o momento presente deixa claro o grau de vulnerabilidade da sociedade para todo tipo de discurso de solução fácil, mas, que em médio/longo prazo se mostrará incapaz de resolver uma raiz fundamental do atraso em que o país se encontra: a incapacidade dos indivíduos de se perceberem como responsáveis pelos seus próprios destinos em âmbito individual e coletivo.